GERAL

Comandante Niltinho: Tide, o piloto que não tinha medo da morte!!!

Tem certas coisas na aviação que nunca consegui entender direito, e uma delas, é o medo da morte, que varia de intensidade conforme o piloto!
Eu mesmo sempre tive muito medo de morrer, era um medroso e, por isto sobrevivi ! Acho que este sentimento é o normal. Temer a morte faz parte da vida do ser humano, da preservação da espécie!
Não ter medo, é anormal, porém já vi alguns pilotos que davam a impressão de que não tinham medo nenhum, eram isentos totalmente deste tipo de sentimento!
O Tide, que é o principal personagem desta história, foi um deles, o outro foi  meu  compadre Odilon!
Não estavam nem aí, parecia que tinham feito um pacto com o diabo, pois faziam muita besteira e nada lhes acontecia! Se voassem na America, há muito tempo seus brevets teriam sido cassados mas, como estamos no Brasil, cada um voa como quer, cada qual dá o seu  jeito e opera o avião como acha melhor!
Manual do fabricante há muito não existe porém, por sorte, nosso espaço aéreo é um deserto, comparado com o dos americanos, caso contrário, muitos já teriam ido ao encontro de Santos Dumont, lá em cima!
O Tide por exemplo, se for contar aqui, o que ele andava fazendo com os aviões que voava, certamente os donos das aeronave iriam ficar com o cabelo em pé! E vocês certamente não iriam acreditar, pensariam que o Niltinho estaria contando lorotas! Mas era a pura verdade, quem conheceu o Tide voando entre nós, iria confirmar o que eu  estou dizendo!
Só que isto tem um preço e os dois os dois acabaram morrendo em acidente com aviões, muito jovens, como já tínhamos previsto, só sobrando as historias e as saudades destes dois malucos!
O Odilon, dizem, foi derrubado no Paraguai, tentando resgatar um traficante milionário, que se encontrava foragido e ferido.

O Tide, numa decolagem desastrosa, com o avião lotado de gente e mercadoria, cometeu o um erro banal, ao invés de ganhar altura voando no eixo da pista que era o correto, acabou engrenou uma curva logo após ter saído do solo, confiando talvez no Robson Stoll que o avião possuía, e não deu outra: bateu com a ponta da asa em uma arvorezinha ao lado da pista e foi se estatelar na cerca que protege a pista, lá ficando com a barriga para cima! Morreram dois e os outros três escaparam raspando, com as mercadorias esparramadas pelo chão!
Conheci o Tide, quando vim voar em Tucumã, por volta de 1995, e abastecia minha camioneta, sempre no posto de gasolina de sua família! Nesta época ele ainda era solteiro, havia terminado de tirar o brevet em Belém, e sempre o encontrava no aeroporto, paquerando os aviões que lá estavam, doido para fazer um voozinho!
Imaginem vocês, que no auge do ouro e do mogno, em Tucumã existiam talvez uns oitenta aviões no pátio, só se via avião subindo e descendo a todo instante e isto, para quem tinha um brevet no bolso, dava um comichão! Certamente não devia ser nada agradável, ficar observando todo aquele trafego, e não estar dentro dele!
Como eu era proprietário de um avião, lógicamente que ele estava sempre me encontrando, ainda mais em razão de também ser um sulista, como eu! Embora fosse bem mais jovem que eu, tínhamos muito em comum! Era também muito conversador e simpático e, por isto, logo ficamos muito amigos!
Um dia ele precisou fazer umas horas de vôo, para registrar em sua caderneta, experiência técnica, com o objetivo de prestar exames para Piloto Comercial, e acabei o servindo na mesma hora e, com isto, nossa amizade só foi aumentando!
Comecei a perceber que ele era muito afoito pois, quando uns doidos apareceram em Tucumã, a fim de faturar uma graninha às custas daquela rapaziada doida por avião, recém saídos da casca do ovo, e montaram uma escola de pára-quedismo que, de escola mesmo não tinha nada! E não é que ele foi um dos primeiros a se arriscar com aquela arapuca!
“ – Vou saltar comandante”! Veio ele alegre me dizendo.
– Cara, você é doido, não? Saia dessa, bicho! Respondi.
– Que nada! E riu, aquela risada que eu o veria dar vezes seguidas! Era sempre assim, ao ser contrariado, ele ria! Parecia que aquilo era um aviso para fosse deixado em paz, pois não iria escutar ninguém mesmo, e foi assim até a sua morte!
Não amadureceu, com o passar dos tempos, é muito comum no inicio da carreira, o piloto fazer certas loucuras, como dar rasante ultra baixo, enfrentar mal tempo sem necessidade, somente para dizer aos colegas que pegou “pauleira” e tinha sobrevivido!
Após certo tempo, no entanto, tudo isto vai perdendo a graça e é aí que ele se torna, então, um verdadeiro piloto, só que o Tide nunca saiu dessa fase!
Que o desgraçado voava bem, tinha o avião na mão, disto ninguém tinha a menor dúvida, entretanto, quantas vezes nos ouvimos que são os bons nadadores que morrem afogados? Na aviação é a mesma coisa!
“ – Vou  confessar uma coisa Tide, se eu chegar na beira de um prédio, entro em pânico, e olha lá, irmão, que nem precisa ser muito alto não! Vou dizer outra, já voei muito sem a porta direita, para que o passageiro ao lado fotografasse e, bicho, só olhava para a direita com o rabo do olho, de tanto medo! E agora você vem me falar. Que ficará de pé na porta da aeronave, mirar bem lá embaixo e mergulhar rumo ao chão, tu é doido, amigo! Fui! Ele ria e dizia”
-Tu és um medroso Niltinho, vou mostrar para você como se faz umas “piruetas” lá em cima!”
Vocês imaginam que o instrutor (se é que se pode chamar “aquilo” de instrutor!), ensinou apenas os alunos a cair no chão e  rolar de lado, e despejou a moçada lá de cima de qualquer jeito!
Foi um desespero, um deles foi parar em cima de uma casa, outro perdeu o rumo e sumiu e, de outro, só se ouvia os gritos de arrependimento, chamando pela sua mãezinha! Foram achá-lo todo esfolado,  enganchado numa arvore, com os olhos arregalados parecendo que tinha visto uma sombração!
Este, saiu dali prometendo matar aquele maldito instrutor, que havia dito que aquilo era como tomar uma sopa e  que ele já estava no ponto para dar aquele salto! Só se fosse no ponto de morrer, gritava ele. O sujeito virou uma fera e ainda bem que o instrutor desapareceu dali, se não ele teria levado umas bolachas!
Sorte maior, foi que abriram todos os pára-quedas e não havia morrido ninguém! O Tide contou que na hora do salto, queria fazer uma brincadeira com o piloto, e com isto se embaralhou todo e acabou saindo da posição certa, o que o obrigou a desistir da brincadeira e se concentrar no que tinha que fazer, pois a coisa azedou, sentiu que seu corpo havia virado uma bola, parecia um machado sem cabo, a velocidade só aumentava e ele caçava e não achava a bendita da cordinha para acionar o pára quedas, e foi dando um desespero, que chegou mesmo a pensar que  ia morrer estatelado lá em baixo!
Estou morto, pensava ele, e o pior, é que a velocidade da queda só aumentava, não tinha lembrança se passado por susto igual mas aquilo era bem legal  cara, dizia!
Foi o máximo, eu vibrei com aquilo, era adrenalina pura, foi demais,  o vento era tanto que não conseguia abrir os olhos, a goela estava seca, se fosse preciso dar um grito,  não conseguiria!
Já imaginando que o povo lá embaixo, estaria pensando que fazia alguma brincadeira, demorando a abrir o  pára quedas, lembrou-se das instruções que recebera em terra  e caçou um jeito de voar, abrindo as pernas e os braços e aí sim, sua situação melhorou, sentiu que estava voando e tratou logo de puxar qualquer coisa que sua mão encontrasse, e foi quando conseguiu, por fim, abrir o pára quedas!
Um alívio, disse, contando que quando o pára quedas abriu, levou uma travada nos ombros, chegando a pensar que ele parecia  estar se separando do corpo! Disse também que, enquanto descia, notou alguém passando ao seu lado, reconhecendo, pelos cabelos e olhos arregalados, uma amiga que também estava saltando!
A única coisa que lamentou, foi que na aterragem, havia errado o pouso e quebrado o pé, mas, de resto, tudo bem! Confessou mais tarde, achar ser necessário pegar mais umas aulas, pois só uma era pouco! E assim deu para vocês imaginarem como ele era,  totalmente isento de medo de morrer!
Outra coisa em que também ele era ousado, era nós negócios, medo de ser devedor não tinha, seu sonho era ficar rico, a qualquer preço! E não é que estava certo, no lugar certo e no momento certo?
Isto é, ele estava na Terra do Meio, onde ocorria a maior corrida de gente, madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, enfim, todo mundo querendo tirar uma lasquinha daquela terra maravilhosa em riquezas naturais! Ele se encarregava do fornecimento de óleo diesel para todos, caminhão, balsa, motores e, quando apertava era de avião, sempre dava conta de atender a todos, não lhe existindo dificuldades!
Por sua causa, a coisa não parava! Levantava cedo e caía no mundo, ora estava no mato, ora estava na cidade, e foi aí que, logo no primeiro ano, acabou comprando uma grande área de mato, perto da Central (comunidade), e já no segundo ano, preparou uns duzentos alqueires para, no terceiro ano, iniciar uma grande fazenda repleta de  bovinos!
Porém, o saco de desejos de muita gente, parece que nunca enche, e então, vendo que os pilotos estavam ganhando um dinheirão fazendo vôos para os aventureiros que ali estavam, deu um jeito e arrendou o avião do Zé Altino, um Cessna 206, com Robson Stol de fábrica, pulou para cima e começou a fazer concorrência brava com os demais pilotos!
Enquanto nós colocávamos quinhentos quilos no Skyline, ele colocava setecentos, no 206 pelo mesmo preço, e assim, só dava ele no pedaço, como era uma fera para trabalhar, voava o dia inteiro, deixando-nos amargando um blefo danado!
Só que da maneira em que voava, estava colocando em risco a sua própria vida, sabíamos, por experiência própria, que ia dar ocorrer algum problema e começamos a ficar preocupados, afinal todos nós gostávamos dele e não queríamos vê-lo envolvido em acidentes! Resolvi ter uma conversa com ele, em nome da turma!
“ – Tide, estou aqui em nome de todos os seus colegas para pedir para você tomar mais cuidado, e observar um pouco mais as regras de vôo! Sabemos que é muito difícil  se enquadrar dentro delas, só que você esta indo longe demais, e vim pedir que mude sua forma de pilotar e de encarar a aviação, afinal estamos vendo que você está na iminência de sofrer um acidente e, portanto, pedimos moderação! Tenha mais cuidado!”
Ele deu uma risada, como sempre, e respondeu:
“ – Niltinho, sei quem foi que pediu para você vir falar comigo, foi o Bosquinho não foi?
– Não só ele como os outros também.
– Ah, cara, este povo esta despeitado, só porque estou voando mais que eles agora, fiquei sendo uma pedrinha no sapato, isto é choradeira, apenas! Não estou nem aí!
Era isto que não conseguia entender no Tide, no Odilon, e em muitos outros pilotos, será que só nós, os pilotos mais antigos, é que pressentíamos o perigo?
Porque não enxergavam o perigo? Era tão fácil de ver, de sentir o risco iminente de vida, será não tinham medo da morte, como nós?
O que estaria se passando na mente daquelas pessoas, que você acha que são normais, e na verdade não são?
Não deu outra, saí de sua casa desanimado, e fui tomar uma cerveja para relaxar afinal, aquela conversa com o Tide, havia me aborrecido muito!
Uns dias depois, encontro-me com o piloto Curiba e ele contou:
“ – Sabe da última do Tide?
– Não, conte!
– Ele foi jogar um rancho (mercadorias) para o Scalabrim, na pista à beira do Rio Iriri, e passou tão baixo em cima de uma castanheira, que a cauda do avião bateu em uma galhada, e um pedaço de pau entrou naquele espaço que fica no profundor, chegando a travar o manche!
– E ele caiu?
– Não, o rabudo teve sorte demais, fez tanta força que o pedaço de pau quebrou e ele deu conta de pousar, só que o passageiro se borrou todo e, além disto, na volta quase caíram por falta de combustível, pois voaram demais por lá e quase não deu para retornar! O Scalabrim está assustado e parece que não quer voar mais com ele!”
Era assim mesmo, todos que voavam com ele acabavam ficando traumatizados e recusavam-se a voar de novo!
Certo dia, estava tirando uma soneca após o almoço, quando o telefone tocou! Era de São Felix.
“ – Niltinho, você não sabe da maior. (Era o piloto Bosco!)
– Fale comando.
– O Tide acaba de cair com o avião, agora mesmo, em cima da pista!
– Mas como?
– Decolou pesado e na mesma hora engrenou uma curva à esquerda, stolando o avião  em cima da cerca!
– Ele morreu?
– Ainda não, só que o acidente foi feio, o avião se acabou, e dos cinco à bordo, ele e outro é que estão vivos, muito machucados!
– Obrigado Bosco, vou já para ai!”
Tratei de avisar o Zé Altino, proprietário do avião e combinamos que ele viria para Tucumã e eu o levaria para São Felix no CZC e assim fizemos, quando ainda estava no tráfego de São Felix, vimos o avião todo quebrado e ficamos com uma dor no coração, que tristeza imaginem, um dos únicos Cessna 206 no Brasil com Robson Stoll (dispositivo para aumentar a sustentação do avião), de fábrica!
A primeira coisa que fizemos, foi visitar o nosso amigo e, que tristeza, sua situação era tão crítica, que providenciaram  a remoção para Goiânia com urgência!  Confesso que, quando eu o vi naquele leito, todo quebrado, chorei e chorei tanto que acabei saindo daquele quarto, na mais profunda tristeza!
Fomos ao local do acidente para ver o avião, e levamos um susto pois a aeronave não teria recuperação, a batida contra o solo tinha sido tão violenta, que várias partes estavam esparramadas à volta, dificultando acreditar que houvera sobrevivente!
“ – Zé, várias vezes tive vontade de avisá-lo, porém você não iria me dar atenção, ele estava muito empolgando, voando muito, deveria estar botando muito dinheiro em seu bolso, e quando isto acontece, fica difícil imaginar que o piloto possa estar fazendo alguma coisa errada, só que para mim não foi surpresa! Você também é piloto das antigas e sabe que com avião não se brinca, e o nosso amigo não parava de brincar!
– Para ele não tinha limites, não conseguia ver suas limitações e nem as da aeronave, o que considero o maior perigo para um piloto, pois, pelo avião em si, dificilmente ocorrem acidentes! Veja você, quando entregava meu avião para ele, não dormia direito só em pensar no pior!”
Tide não resistiu aos ferimentos e, apesar de lutar durante quase uma semana, veio a falecer em Goiania!
E assim termino esta história com o coração partido, afinal gostaria  que meu amigo estivesse aqui conosco, para poder ouvir aquela risadinha dele e abraçá-lo mas, agora é tarde, não tem como mudar!
Esta historia poderá servir de exemplo para alguém que queira se tornar um piloto um dia. E como conselho de gente experiente, digo que, todos aqueles que queiram aprender a voar, que tenham respeito e medo da morte!
Foi com medo de morrer, que manteve-me vivo, o importante é se aposentar na aviação e ter a oportunidade de escrever a suas histórias, como estou fazendo, e não morrer jovem!    
Comandante Niltinho
é piloto de garimpo                  

3 thoughts on “Comandante Niltinho: Tide, o piloto que não tinha medo da morte!!!

  • Anonymous

    conheci o Tide tambem!nessa epoca acho que ele nem tinha tirado o brever ainda,ele era maluco mesmo!ja faz uns 15 anos que nao vou a Tucama nao sabia que ele tinha acidentado.

  • Paulo Henrique

    Conheci o Tide em Tucumã e não acho que ele não tinha medo da morte: ele era completamente maluco e nunca colocava a segurança de voo em primeiro plano! Deu no que deu!
    Quem se cuida está por aí!

  • Eu conheci o Tide e vi uma decolagem do abastecimento do antigo aeroporto de Tucuma contra o posto de gasolina e as antenas na cabeceira que me deram arrepio… era doido demais… tempos depois numa outra safra de semente operei na pista dele… e me contaram do acidente… que fim triste…Sepé Barradas, piloto agricola

Fechado para comentários.